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Complexo da Maré é o meu país

Favelas da Maré abrigam a maior comunidade de angolanos do Rio de Janeiro

Estávamos em um cruzamento da Vila do Pinheiro, no Complexo da Maré, onde todos as tardes de domingos é realizado o tradicional "Pagode da C11" e à noite a rua dá lugar ao baile funk. Aquele encontro de ruas é famoso, todos os mototaxistas sabem onde é. Nos dias de evento são muitos clientes para o mesmo endereço. Fazia mais de 40ºC. Muitos moradores colocavam suas piscinas na rua, ou aproveitavam chuveiros comunitários. Churrascos ao ar livre, nas calçadas e nas lajes. Dentro de casa, definitivamente, não era o melhor lugar para se estar com aquele calor.

Hora do almoço!

Cheirinho de galinha à cabidela no ar.

Do restaurante do Edson, avistamos dois grupos de angolanos, nas esquinas. Em um deles, uma mãe estava com o filho ao colo. Ambos grupos ficaram plantados ali o dia inteiro. Exceto a mãe com a criança, passando rapidamente por eles e voltamos à lojinha do Na Favela — produtora audiovisual da Maré. Lá, os vizinhos passeiam, visitam, dão um “oi”, pedem a senha do wi-fi, tiram uma “casquinha” do ar condicionado, pergunta se tem vaga de emprego, bebem água e por aí vai. Difícil é estar um dia no escritório sem ser interrompida por pessoas ou pelo som das motos que vem da rua.

O dia caiu, e os dois grupos ainda estavam lá, na esquina. Apesar do escritório do Na Favela ser muito frequentado, os angolanos não se aproximam, nem olham para dentro da “lojinha”.

— Aqui na C11 é o reduto dos ‘angolas’ ( sic ), me diz um amigo.

— E o que eles fazem? Como eles vivem? Por que vieram justo para cá?, perguntei.

Meu amigo, cria do Pinheiro, pouco soube me responder.

— Eles ficam na rua o dia todo, fazem muitas festas, vão pra igreja e estão loucos para casar. Cuidado, hein! (risos)

Continuei.

— mas como eles ganham a vida? Eles recebem ajuda do governo?

Ele, então, me contou a respeito de eventuais reuniões do consulado angolano para realização de registros civis, realizadas ali perto.

Esquina da rua C11, Pinheiro, Complexo da Maré, quarta-feira.

Meninos usando wi-fi da lojinha da produtora “Na Favela”.

Nos três meses seguintes dos quais frequentei a lojinha (escritório) do Na Favela, nunca mais se falou dos “angolas” (sic) — como são chamados por alguns vizinhos cariocas. Exceto num dia, de curiosidade aguda, quando resolvi conversar com um deles. Conheci Melo, saído sozinho de seu país, ainda aos 15 anos de idade. Ao todo, está no Brasil há mais de 21 anos.

Melo na calçada da C11, onde costuma ficar nas horas vagas.

Após independência de Portugal, em 1975, o país africano sofreu com intensas guerras civis 1, marcadas por disputas entre etnias angolanas pelos territórios antes pertencentes à antiga colônia. Nos anos 90, houve acirramento dos conflitos bélicos, período em que um grande número de angolanos migrou para o Brasil. O fim dos conflitos foi selado em 2002, com a morte do líder da UNITA (União Nacional para independência total de Angola), Jonas Savimbi.

Neste período, em 1996, Melo saiu de Luanda para o Rio de Janeiro. Fugia do alistamento militar obrigatório, como muitos outros jovens que podiam; os que não tiveram a mesma sorte, lutaram ou se esconderam das forças militares.

O início da relação entre Luanda e Maré

Conta-se que a relação com a Maré começou na década de 80, quando um jovem chamado Fortunato veio de Luanda ao Rio de Janeiro. O jovem angolano, de trajetória parecida com os demais de sua geração, migrou em busca de uma vida melhor no Brasil. Chegou para morar em Copacabana, bairro conhecido por ele através das novelas brasileiras, muito antes de por aqui chegar. Para Fortunato, Copacabana era parecida com Luanda.

— Tem mar, uma quadra [esportiva], é quente, porém tem segurança.

Certo dia, Fortunato conheceu uma moça carioca e se apaixonou. A moça morava no Complexo da Maré. Inicialmente, Fortunato achava que era muito perigoso e relutou em visitá-la. Contudo, a saudade o motivou. Então, foi conhecer a Vila do João, depois a Vila dos Pinheiros. A princípio não viu nada demais no lugar. Passou a visitar sua namorada várias vezes, até que casaram e ele mudou-se definitivamente para o Complexo da Maré. Fortunato tratou de contar aos amigos compatriotas, do bairro Rangel, em Angola; Eles então contaram para outros amigos. Logo, o lugar achado por Fortunato ficou conhecido em seu país de origem. Assim, muitos angolanos vieram à Maré e até hoje continuam chegando. Dados não oficiais contam mais de mil angolanos residentes no Complexo de favelas da Maré. Muitos chegam sem documentos e assumem o lugar de refugiados perante o Estado brasileiro.

— Muitos amigos vem do mesmo bairro, o bairro Rangel, para a Maré, então todos se conhecem, conta Melo.

Amigos, porém desiguais

A relação entre os dois bairros de países distintos é fraterna, mas assimétrica, como apontou Melo em nossa conversa.

Há muitas razões para que haja essa assimetria, uma delas é a exploração do mercado consumidor de Angola pelo Brasil. Os angolanos estão mergulhados em produtos brasileiros de todos os tipos. Eles acessam informações sobre o Brasil, mas o contrário não ocorre da mesma forma, como me contou Melo: — Eu via que a roupa brasileira chegava lá, o frango, a música e o futebol também, então vi que tínhamos muita coisa em comum. Nós já nos vestíamos como brasileiros, a música e o futebol eram minhas paixões. Além da língua portuguesa. Quando vim para cá primeiro fui pra Copacabana, depois para o Méier, morei um tempo em São Paulo, mas era muito frio e não gostei.

Diferentemente de muitos dos seus compatriotas, Melo conseguiu reunir capital e sair do seu país de origem em busca de um Brasil das novelas e dos produtos exportados. De onde veio, nosso país é qualificado socialmente como um lugar valorizado e que muitos gostariam de estar. Como me disse, a Copacabana da novela que assistia em Angola era para ele a capital do Brasil, um lugar bonito e bom de se viver, e sobretudo, um local seguro se comparado à guerra civil do seu país. Inversamente, para os brasileiros, Angola é mantido à distância.

Para alguns angolanos que fugiram da guerra civil, vir para cá não significa só ascensão social, mas também pertencer um local familiar, onde a cultura se aproxima da sua terra natal. Contudo, por aqui a percepção do país africano não é recíproca. Meu interlocutor conta que, no início dos anos dois mil, a polícia fez associações dos angolanos com o tráfico, fato que o aterrorizou. Os emigrantes africanos foram estigmatizados por muito tempo dentro e fora da comunidade.

— Dentro da comunidade tínhamos medo de transitar do território de uma facção para outra e fora tínhamos medo de sermos alvejados por policiais, ele me conta.

Atualmente, Melo faz graduação em turismo, constituiu sua família com a carioca que o fez mudar para Maré, e juntos têm um filho adolescente. Tem certa estabilidade financeira, é sócio de um bar na esquina da Rua C11. Onde sempre ficam os angolanos “plantados” ( sic ). Melo me explica que seus amigos podem ficar ali durante o dia porque muitos estão desempregados ou trabalham com alguma atividade informal. — É a hora de lazer, como vocês dizem. O ócio. Assim como os europeus fazem (risos). E complementa: — A Maré foi a melhor opção de moradia que encontrei para me estabelecer no Brasil e construir minha família. Você sabe como é, pobre não tem muito que escolher, pelo menos aqui me dou bem com todo mundo, todos são simpáticos, me tratam bem. Tem muito nordestino na Maré e a comida nordestina é bem parecida com a angolana. Temos aqui tudo que tínhamos lá: caruru, quiabo, farinha etc.

A comida parecida, as roupas brasileiras, e a história de Fortunato, como um mito de origem da intensa emigração, constroem novas identidades e reforçam laços sociais entre os angolanos e os moradores cariocas. Um evento também importante nesse contexto é, o tão falado, pagode da C11.

— No início era só os angolanos, mas depois virou de todo mundo, perdemos o nosso pagode! conta Melo, na galhofa, sobre a apropriação da comunidade pela festa angolana. Agora a festa conta com muitas caixas de som ao melhor estilo baile funk, porém sem deixar de ter uma forte presença das músicas e danças do país africano. Ali, os dois povos se encontram e Melo e seus amigos reconstroem suas identidades.

NOTA

  1. Antes da guerra civil eclodir entre compatriotas, esse grande movimento migratório [de angolanos no Brasil] teve suas origens nas violências causadas pelos reinos europeus ainda no século XV. Nessa época, enquanto Angola pertencia ao grande reino do Congo, que também abarcava os atuais territórios do Congo e Congo Brazzavile e era um dos mais proeminentes do continente Africano, a Europa seguia rumo a expansão marítima e exploração de novos territórios. No final do século XV, iniciou-se o processo de colonização da região por Portugal. No século seguinte, Portugal também colonizou o Brasil. Essa história nos é familiar. E como diria nosso personagem, Melo: — Angola tem muito do Brasil e vice-versa. Portanto, as semelhanças sobre as quais Melo fala começam por aí: a colonização, as violências sofridas, a língua oficial e a escravidão. Fatidicamente, até a independência do Brasil, 100% das exportações angolanas vinham para cá, a maior parte das exportações era composta por pessoas escravizadas de diferentes etnias, e em menor proporção, produtos como marfim e cera de abelha. A partir daí, as duas colônias fizeram trocas comerciais e culturais intensamente.

LINKS

Entrevista da BBC com o escritor angolano Pepetela: https://goo.gl/HR4gyi

Edição da revista História sobre Angola: https://goo.gl/CrJkN1

Vídeo sobre a comunidade angolana na Maré: www.facebook.com/novaangola/videos/1131850086841373


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